No ápice da Revolução Industrial, em meados do século XIX, os países industrializados se deram conta de que a exploração indiscriminada da mão de obra sob os auspícios da livre iniciativa e da autonomia privada estava gerando uma multidão de inválidos, de modo a comprometer sua força produtiva e a própria capacidade de suprir as necessidades dos exércitos nacionais ante as demandas bélicas do período.

Surgiram, então, as primeiras normas trabalhistas destinadas a estabelecer os patamares civilizatórios mínimos para o emprego da força de trabalho dos seres humanos em questões centrais para a saúde e segurança no trabalho. Para assegurar a observância a tais regras e, consequentemente, os seus relevantes objetivos sociais, foram constituídos os primeiros corpos de inspetores do trabalho em 1833, no Reino Unido, através do Factories Act, seguindo-se sua instituição nos demais países industrializados da Europa.

Com o passar do tempo e com os ganhos de complexidade na industrialização, em função da utilização de novos insumos e do aparecimento de novos riscos, os inspetores do trabalho passaram a atuar na linha de frente da tutela da saúde pública, buscando impedir que as condições degradantes de trabalho, bem assim os acidentes e as doenças ocupacionais consumissem a integridade psicofísica dos trabalhadores e onerassem de maneira desproporcional os serviços sanitários e previdenciários do Estado.

Dada a importância capital da inspeção do trabalho para o resguardo das condições laborais, a Organização Internacional do Trabalho promulgou, em 1947, uma convenção especialmente dedicada ao tema (a de número 81), estabelecendo como linhas mestras (i) a independência dos auditores em relação aos agentes políticos do Estado e (ii) a autonomia funcional no exercício da fiscalização e na tomada das decisões administrativas.

No Brasil, a Inspeção do Trabalho foi instituída originalmente em 1891, por intermédio do Decreto nº 1.313, como um corpo de agentes públicos dedicado à fiscalização dos trabalhos dos menores nas fábricas do então Distrito Federal.

Suas atribuições de inspetoria foram estendidas à generalidade das condições laborais em todo o Território Nacional com a instituição do Ministério do Trabalho, na década de 1930 e regulamentadas nos artigos 626 a 642 da CLT, em 1943, bem como no Regulamento da Inspeção do Trabalho (Decreto nº 55.841/65) e, mais recentemente, na Lei nº 10.593, de 6.12.2002. É importante destacar, a propósito, que o País ratificou a Convenção nº 81 da OIT e a integrou efetivamente ao seu ordenamento jurídico.

A despeito dos problemas históricos concernentes à interferência política indevida, à precariedade da estrutura operacional e à quantidade insuficiente de pessoal, a Auditoria-Fiscal do Trabalho brasileira vem atuando de forma decisiva em uma série de questões, como, por exemplo, o combate ao trabalho escravo e ao trabalho infantil, tendo logrado, além disso, a formação de quadros técnicos que se tornaram referência em diversos temas relacionados à saúde e à segurança do trabalho.

No entanto, como era de se esperar, as atividades realizadas pela Auditoria-Fiscal do Trabalho não foram poupadas do discurso de cunho ultraliberal a ganhar corpo a partir da década de 1990, orientado para o desmonte de todas aquelas estruturas do Estado que estariam a “atrapalhar” a atividade empreendedora privada, a geração de empregos e a movimentação da economia.

E, de fato, com o recrudescimento de tal discurso nos últimos anos, ainda mais acentuado pela divulgação massiva de opiniões tacanhas e propositalmente perfunctórias a respeito da atuação da fiscalização trabalhista, esta última passou a ser identificada pelos entusiastas do ultraliberalismo como uma instituição dedicada a exigir dos empresários formalidades despropositadas e a lhes impor custos operacionais e multas indevidas que estariam a inviabilizar a atividade empreendedora.

Em linha com tal entendimento, o atual Governo Federal editou em novembro de 2019 a MP 905, cujo texto promoveu uma série de alterações que impactam diretamente na atuação dos Auditores-Fiscais do Trabalho, de modo a potencializar a interferência de agentes políticos em suas atribuições institucionais, para além de restringir suas prerrogativas funcionais e de criar embaraços significativos à fiscalização laboral, em notória contrariedade ao interesse público e aos princípios regentes da Administração Pública.

Nesse sentido, foram inseridos dois novos dispositivos no Título VII da CLT (artigos 627-A e 627-B) conferindo às autoridades da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia atribuições correspondentes à elaboração de rotinas de fiscalização no âmbito dos “procedimentos especiais para a ação fiscal” e dos “projetos especiais de fiscalização setorial”. Tais alterações redundarão, em termos práticos, na subtração de parcela significativa de autonomia conferida aos Auditores-Fiscais do Trabalho no que concerne ao planejamento das ações fiscalizatórias, bem como à identificação e à repressão, em concreto, das irregularidades eventualmente detectadas nas empresas autuadas.

Além disso, a inovação introduzida na nova redação conferida aos artigo 635 e 637-A da CLT, que introduz a figura do Conselho Recursal Paritário na estrutura da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, acaba por conferir a indivíduos estranhos à carreira da Auditoria-Fiscal do Trabalho não só a decisão final sobre as penalidades impostas pelos integrantes desta última, como também a prerrogativa de uniformizar sua jurisprudência, de modo a vincular – e limitar –  a atuação fiscalizatória trabalhista.

Ocorre, no entanto, que nem todas as bases de dados existentes nas mais diversas estruturas da Administração Pública Federal direta e indireta são acessíveis aos Auditores-Fiscais do Trabalho e ainda que algumas delas o sejam, não contêm em seus arquivos físicos ou eletrônicos a totalidade das informações necessárias à fiscalização em concreto realizada nos locais de trabalho.

E, como se já não bastasse, o texto da MP 905 estabelece que o “procedimento especial para a ação fiscal” e as “ações coletivas de prevenção e saneamento das irregularidades” inseridas nos artigos 627-A e 628-A da CLT, não poderão resultar na autuação dos empregadores pelos Auditores-Fiscais do Trabalho mesmo quando estes últimos atestarem, em concreto, a ocorrência de irregularidades. Ao assim proceder, acaba-se por incentivar exatamente a perpetração das situações de infração à ordem pública cuja coibição constitui a essência da fiscalização laboral.

A mesma constatação é extraída do artigo 627 da CLT, reformulado pela MP 905/2019, cujo teor amplia o critério de dupla visita para uma quantidade significativamente maior de hipóteses e impõe a realização de visitas em separado para cada item notificado pelo Auditor-Fiscal do Trabalho em inspeção anterior. Trata-se de  procedimento que se mostra destituído de qualquer racionalidade sob o ponto de vista produtivo, porquanto exige dos agentes públicos e da própria estrutura administrativa empregada nas atividades fiscais a repetição desnecessária de rotinas, a resultar (i) no aumento do custo em tempo e em recursos financeiros para a reiteração de procedimentos dispensáveis e (ii) na subsistência das situações irregulares constatadas nos locais de trabalho avaliados, em sentido diametralmente oposto à desburocratização almejada pela MP 905/2019.

Em síntese, pode-se afirmar que os dispositivos da MP 905/2019 concernentes à inspeção laboral têm por objetivos (i) a retirada de qualquer resquício de autonomia conferida aos Auditores-Fiscais do Trabalho no exercício de suas atividades regulares; (ii) a criação de formalidades destinadas a obstar a fiscalização in loco das empresas e (iii) a transposição das decisões finais em matéria fiscalizatória a agentes políticos distintos dos integrantes da referida carreira.

Busca-se, dessa forma, avançar no desmonte da Auditoria-Fiscal do Trabalho, sob a crença (não necessariamente realista) de que o surgimento de ocupações precárias colocadas a salvo da vigilância do Estado – aí incluídas as brechas para a legitimação de situações de trabalho análogo à escravidão – contribuiria para a melhora do cenário econômico e sob a justificativa de que tal resultado compensaria a depreciação dos padrões (já baixos) de saúde e de segurança no trabalho.

Para aqueles que professam tal crença e que respaldam tal justificativa convém recordar que a precarização das condições de trabalho em tal medida cobrará, ao fim e ao cabo, uma altíssima conta que será custeada pelo Estado e por toda sociedade brasileira, não apenas através do aumento das despesas com os sistemas de saúde e de previdência, mas também pelo significativo incremento da desigualdade social e das inúmeras intercorrências a ela inerentes. O desmonte da Auditoria-Fiscal do Trabalho, na forma iniciada pela MP 905/2019, configura um passo decisivo dado nesse sentido.